mercoledì 3 marzo 2021

31. Romaria

 É de sonho e de pó que se começa e se finisce a Romaria.

Cheguei já querendo partir. E Roma ria.

Mandando tudo e todos a quel paese. E Roma ia.

Só quem não (r)ia era eu… Eu permanecia e permaneci por dois anos… de Romaria.


Era carma ou acaso? Aquisição ou cilada? Era para treinar autovalidação ou aceitação radical?

Um dia, no auge do desespero, escrevi para uma amiga querida que já havia morado na Itália para pedir colo e socorro. Ela tinha bagagem cultural e tem Roma no nome… não tinha como dar errado. Muito sensível, minha amiga me acolheu e fez uma leitura intuitiva: “Li, eu sei que está muito sofrido, eu vejo muita dor. Mas Roma para você é um presente. Aceita, aprende, entrega… o percurso não dura muito. Só depende de você”. Ela me prometeu que o dependurado desviraria no tempo certo.


Quando a gente está no início da peregrinação, o graveto vira cajado. Agarrei as palavras da profetiza e me rendi: fui fazer hip hop com os romanos da periferia, natação na piscina comunal… meu auge foi arrastar meu marido para aula de danças folclóricas do sul da Itália (joga “Pizzica” no google e vê que lindeza!)

Empenhei-me um tiquinho na fonética correta italiana que, até então, eu só havia aprendido por imersão. Cantei em italiano. Ensinei italiano. 

Mas tudo isso foi só gracejo e lazer.


O bicho pegou mesmo foi na alma, não no corpo. Li cinco livros sobre o Império Romano, revi O Gladiador, chorei com a perseguição aos cristãos, me emocionei no Circo Massimo imaginando a matança aplaudida. Era a violência de Roma o que mais me interpelava.


Violência esta que não estava mais nas arenas, mas nas bocas das quitandas, na surra das crianças, nos crimes passionais.

 

O pulo do gato (um dos milhões do Largo di Torre Argentina) foi saltar da pizzica à CNV. A desenvoltura dos pés rápidos da tarantella não me interessava tanto quanto as curvas das línguas que mandavam affanculo.


Sem a minha Romaria, eu dificilmente teria ido estudar Comunicação Não-Violenta. No meio dos “Secondo me”, “Lo so io” e “Capisci niente”, descobri enfim as flexões de uma língua italiana que podia ser muito mais Gandhi e menos Nero. 


Sempre no caminho dos avessos, Roma - com toda a sua fúria - paradoxalmente foi a impetuosa senhora a me convidar à paz. 


Hoje eu sei que eu nunca detestei Roma. Compreendi que a minha raiva era a expressão trágica de todas as minhas necessidades que ela não conseguia atender. E eu a julgava… era o meu julgamento que produzia a cólera.


Roma, eu te honro por essa peregrinação. Aprendemos a nos olhar empaticamente e isso é um regalo daqueles que permanecem. Quero terminar nosso relacionamento da forma como (hoje) eu acredito que todos os relacionamentos inevitavelmente findáveis deveriam acabar. Sem culpa, vergonha ou medo. Sem violência. No final, nosso relacionamento não era abusivo. Você é magnífica. Eu sou esplêndida. 


Allo stesso tempo, definitivamente, somos incapazes de atender as necessidades uma da outra. Não sei te dar a energia e o vigor que me pedes. E em ti não encontro a calmaria e contentamento que almejo. 


Grazie infinite pelas estradas largas e tortuosas. Obrigada pelos avessos; pelo outro lado do mesmo pano que é o seu Amor. 

Nossa travessia è fatta


Ria Roma, rio eu. 


E assim… te deixo.



mercoledì 6 maggio 2020

30. A Insatisfação e o Sagrado

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Alberto Caeiro é um gênio! Melhor que gênio, mentalmente saudável. Nesses versos, ele é espontaneamente bucólico e satisfeito e, como tal, não reproduz o sintoma da “grama do vizinho é mais verde”. Gente assim me deixa incrédula.

Meus caros! O Tejo é maravilhoso! É óbvio que é muito mais belo que o riozinho lá do povoado dele. Óbvio. E ele nega. E romantiza em cima. Gente assim me faz inveja.

Para Caeiro, a repetição cotidiana não rouba a sacralidade do seu lugar. Ao contrário. A persistência costumeira é o que, justamente, alimenta a sua paixão. Imagina só ser assim? Imagina só não sofrer de insatisfação histérica crônica? Caeiro, ensina-me!

Adoro um texto do Guruji, líder pacifista hindu, que afirma que a memória tem o poder de nos arrebatar a magia das coisas santas. Quem mora ao pé do Himalaia, na repetição rotineira da visão, para de considerá-lo sagrado. Deve ser parecido com quem mora ao lado do Ibirapuera ou do Muro das Lamentações. Deve ser parecido com comemorar Natal todo dia. Ou comer moyashi todo dia. Deve ser parecido com relação longa. Deve ser, deve ser, deve ser... A memória se insatisfaz. 

Depois de mais de dois meses enclausurada em casa, Roma - que nunca foi santa para mim - inicia a dar sinais de sacralidade. É que minha memória cansou de santificar o lar e começou a querer dar voltinhas na Vila Borghese, visitar a Basílica de São Paulo, passear às margens do Tibre. É animador. Só temo que esse encanto dure… duas semanas? Insatisfação histérica não é brincadeira.

Freud que me desculpe, mas ultimamente estou apelando para as respostas prontas… Eu e Cazuza pagamos a conta da analista, não queremos saber quem somos. Quero receita.

O guru diz ainda que não haveria nada no mundo capaz de nos trazer tanta satisfação quanto um ato sagrado. O santificado quebra a inércia habitual. A mudança do objeto - do parque, do homem, da CIDADE - só produziria mais insatisfação. (Novidade para alguém?) O único antídoto real contra a enfadada memória seria o sadhana, a prática espiritual. Da forma como compreendo o conceito seria - através de meditações, rezas, asanas, mantras e cia limitada - desenvolver a intencional busca de sentido e veneração nas coisas, lugares, pessoas e situações. Ver propositadamente a divindade em tudo. O paradoxo maneiríssimo é que, do mesmo modo como a repetição da mente fatigada teria o poder de apagar as belezas, a sua reprodução com devoção poderia ressuscitar a graça que um dia lá esteve (ou até a que nunca esteve? Espero que sim).

Anteontem, dia 4 de maio, começou a paulatina reabertura da Itália. As lembranças voltarão a circular. Quero resgatar a formosura romana. Mentira. Só se resgata o que já foi. No meu caso, quero fazê-la germinar ali, onde nunca existiu divindade para mim. 

Vou toda trabalhada no sadhana, depois de dois meses de retiro forçado. Vou com a aposta na Ciência, a fé em Krishna e a proteção resignada de Alberto Caeiro. Vou lá santificar o Tej… ops, o Tibre!



Rio Tibre, Roma. Foto do Pinterest.

domenica 5 aprile 2020

29. Primeiro de abril


No dia da mentira, fez um ano que eu vim para cá. Escolha inconsciente de uma data que, ao existir, cruza os dedos nas costas e sorri? Te engana e faz tudo de brincadeira, de mentirinha. O que me deu na cabeça para deixar o Brasil logo no primeiro de abril? (Rimou!)


Sabe, o expatriado que ama o país de origem parte querendo ficar. Sabe por que parte e suas razões podem ser as mais legítimas. Ainda assim, é inconcebível que a autenticidade da partida possa anular o desejo de permanecer. Então eu parti, de verdade, mas de brincadeirinha.

Meu tipo de migração é aquela que quer encontrar a aventura da terra nova amalgamada ao conforto do lar. Quer provar as especiarias locais e reclama pelo dendê. Deseja aprender língua gringa e chora em português. Vai no fado no bairro Chiado em Lisboa e bebe caipirinha. Quer imersão na cultura mas, quando dá por si, está na feijoada carioca (seja em Londres, em Bali ou no Peru). Brasileiro é um bicho engraçado. É um bicho gostoso.

Eu tô é achando que foi muito justo me proteger de tanta saudade vindo em primeiro de abril. Pelo menos, alguma parte do meu cérebro deve ter ficado na dúvida. Algum órgão do meu corpo deve ter alimentado esperança de Guaraná. Algum caju deve ter ficado me esperando na fruteira da ex casa. Saí à francesa.

E cheguei à romana.

Atropelada, caótica, reclamona… Gritando e espantando os pedestres. Quem chega em Roma não consegue chegar de fininho. Aqui não tem nada fininho. Só a pizza! A estrada, a gente… não. Nem a fineza aqui é fina!

O problema de partir à francesa é que não nos despedimos de nós mesmos. 

“Caiu! É primeiro de abril!”

O problema é que o calendário gira, o abril muda e a gente fica esperando a risada aliviada do destino que acompanha o gracejo:

“Brincadeira! É primeiro de abril!”

O problema de partir à francesa é que vem só a mentirinha e ninguém vem desfazê-la para te abrandar. O fuxico só faz rir se desmentido. Alguém vem me desmentir?

Talvez um ano seja muito para ficar esperando a segunda parte da piada. Talvez eu tenha errado o gênero do filme… Não era comédia, então?

O que acontece quando a piada não faz rir? Alguém rouba a cena e introduz um outro elemento! É essa a regra máxima dos teatros de improvisação! Nunca usar a rejeição do ato. Não negar o que foi dito pelo colega. Embarque na fábula (mesmo absurda, mesma maçante) e desenvolva-a.

Se um ator diz: 

“Então venha comigo passear no meu hipopótamo alado””

O próximo artista pode tudo em sua fala, exceto negar a veracidade do já ocorrido:

“Mas hipopótamos não voam” ou “Você não tem um hipopótamo” seriam respostas completamente disfuncionais no teatro de improvisação, pois negam o fato e, como eles dizem, “matam a cena”.

Você pode até ter horror a hipopótamos ou medo de voar. Pode gritar, estrangulá-lo, xingar o outro ator… vai fundo! Mas não pode negá-los. Não mate a cena. Matar a cena acaba com a peça.

Pergunto-me se não tenho matado a cena desde que cheguei em Roma. Não gosto da capital desde o primeiro instante e sigo matando seus hipopótamos, carros, rios e pessoas cidade afora. Há um ano.

Nenhuma improvisação pode ser fecunda na rejeição do ato. Nenhum teatro que negue a cena será divertido. Por que, então, a minha vida cênica haveria de ser?

Um ano, Roma. Um ano. Passou da hora de pararmos de negar uma a outra. A aceitação (e por que não, o amor?) talvez nasçam desse possível confronto. Confronto esse oriundo de um improviso mais acessível, mais real. Menos à francesa. Mais à romana.

Aqui começa minha segunda primavera. Que a vida seja abundante. Não quero mais matar nada. Talvez vocês me vejam voando de elefante por aí… aterrando quiçá no Pantheon.






venerdì 27 marzo 2020

28. CoRoma Vírus

(Para Nathalia)

Mesmo antes da China e da crise ficarem tão faladas, já se dizia que, em chinês, a palavra “crise” correspondia ao caractere weiji e que significava tanto “perigo” como “oportunidade”. Dando uma pesquisada mais profunda, descobri que essa definição bonitinha é um tanto falaciosa. O termo, verdadeiramente, quer dizer “crise; situação de perigo; momento precário”. E é apenas a justaposição de “ji” com outros caracteres que produziria o sentido de “chance, ocasião, oportunidade”. Pareceu-me bem OPORTUNO para os tempos atuais. O vírus nos traz, com a crise, a apreensão e o risco emergente; criar a oportunidade é por nossa conta... 


Crisálidas isoladas que estamos (quase) todos nós, fui (apenas mais uma) a ficar pensando na potência da pandemia. O mal-estar sempre foi bom professor.

Quando eu conheci meu marido, estava estudando alemão. E, antes disso, estava estudando norueguês. Brasileiro acha cool morar na Europa. E eu, vaidosa que sou, não pretendia morar na Mooca do União Europeia quando, lá ao norte, existia a Escandinávia! A língua de Dante não tinha atrativos para mim… Mas eis que a oportunidade (ou risco iminente?) chegou. Avassaladora como um vírus invisível: a imigração para Roma.

Sozinha, sem emprego, sem família e sem amigos no fim do inverno europeu. Trancada em casa. Um ano antes que as autoridades determinassem qualquer decreto, eu vivia meu isolamento por vontade própria. O culpado? Co-Roma Vírus. Meu Covid-19 chegou no mesmo ano, nove meses antes de aterrar na terra de Mulan. 

Sim, eu sei que tô catastrofizando tudo. É um desrespeito com o PLANETA eu comparar meu processo de white people problem a essa guerra oculta. E sim, faz toda diferença você escolher ou ser compelido a isolar-se, mas não é esse o ponto. O fato é que a combinação retiro + mal-estar me deu ganhos incomensuráveis que sinto estarem sendo reeditados com a situação atual.

Além do combo de escassez citado acima pelas condições de recém-expatriada, ainda tinha a antipatia com a cidade. Já de partida, eu achava difícil pra caramba gostar de um lugar que tinha matado um Cara tão legal quanto Jesus. O tanto de porta fechada, burocracia, descaso, grosseria, xenofobia e lentidão apenas coroaram o cenário apocalíptico.

Eu falei Apocalipse? É o que o senso comum diz da atual circunstância, certo? Há outros discursos. Sociólogos chamam de divisor de águas da nossa geração; para os espíritas, a transição planetária; prenúncio da Era de Aquário para os astrólogos… a lista continua. Mas eu não tenho condição nem pretensão alguma de me debruçar sobre o assunto. Tem muita gente (qualificada e não) escrevendo coisa (bacana e não) sobre isso. A unanimidade é a seguinte: precisamos encontrar novas formas de produzir, de consumir, de habitar… de existir. 

O expatriado passa por tudo isso. Com uma dose do mesmo bônus do Corona: o medo.

Dentre todas as benesses que o meu Co-Roma me trouxe, a gestão do pânico foi a mais preponderante. Pânico mesmo. Tive minha primeira crise de pânico aos 8 anos de idade e, depois de inúmeros tipos de tratamento em 22 anos (não estou exagerando quando digo inúmeros), não acreditava mais em poder superá-lo. Foi em partes Co-Roma, a minha inimiga sem rosto, que me curou. Completamente. Muita coisa aconteceu nesse solo em isolamento. Em Roma, eu voltei a sangrar. Em Roma, me vi mulher. Em Roma, pensei que enlouqueceria. Em Roma, eu doí até aceitar. Da aceitação germinou a obra e, com a obra, novas formas de habitar e existir. Co-Roma-19 foi boa para mim. “Uma benção disfarçada”, como ouvi do guru indiano.

O mundo está em pânico e, de pavor, eu entendo. E sei que a esquiva de senti-lo, lançando-se no frenesi da vida, é o modo mais eficiente de fazê-lo permanecer. Não é negando que se resolve, não escutemos o presidente. Nem negar, nem enlouquecer. Aceitá-lo, respeitá-lo e retirar-se. O combatimento, diferentemente das outras guerras, é tarefa de alguns poucos heróis das ciências médicas. A nós outros, o retiro. Afinal, caberá a nós decidirmos essas novas formas de existir quando o vírus e o medo passarem. 

O petróleo despencou. Precisamos mesmo reerguê-lo? 

Manteremos limpos os canais da Bella Venezia?

Apagaremos de novo as estrelas que, em apenas 15 dias, voltaram a ser visíveis?


A cooperação não precisa minguar quando o salário cair na conta novamente. O consumo não deve tirar o atraso, nem fazer novo estoque. 

A crise de pânico, quando não aceita e vivida, tende a retornar num labirinto vicioso. O vírus se vai, mas - se precisarmos - a Natureza nos chama a atenção quantas mais vezes forem.

Lembremos dos chineses (povo e léxico): a crise só vira oportunidade se nós fizermos a justaposição. A justa posição.



domenica 15 marzo 2020

27. Pra ver o Corona passar cantando coisas de amor

Estava ativa na vida
Quando esse vírus chegou 
Nos confinando em casa
Pra proteger o vovô

A minha gente aturdida 
Saiu do lavoro
Pro vírus não se alastrar
Causando mais pânico 

E toda escola que ensinava os bambini fechou
A Bovespa que ganhava dim-dim despencou 
O namorado que buscava um beijinho tomou uma multa por estar de passagem 
Enfim o povo que era tão preocupado sorriu
Abriu a boca, o cuore e o otimismo explodiu 
E a italianada no balcão se juntou
Pra ver o corona passar
Cantando coisas de amor

O velho fraco pôs a máscara, a luva e pensou
Que com cautela dá pra ir no terraço e dançou
A romaninha debruçou na janela
Pra ver a Corona Band de sentinela 
A marcha alegre se espalhou na Città e insistiu
A esperança que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver o corona passar cantando coisas de amor

Pois o que era desencanto,
Medo, choque e dor
Fez nascer e fez vingar
A fé no coletivo 

E cada Estado do mundo
Bora aprender com o Corô
A saúde é pública 
Privado é egoísmo 

Então vamos despertar 
A fé no coletivo…
A saúde é pública
Vamos aprender com o Corô...
E ver o vírus passar 
Cantando coisas de amor...
Ver o corona passar
Fazendo coisas de amor...
Ver o corona passar
Tomar medidas de amor...


domenica 1 marzo 2020

26. O banquete de Platão no meu domingo não

Hoje é domingo. Pede cachimbo no Brasil. Ou seria pé de cachimbo?
Oggi è domenica. Pede guerra na Itália. Ou seria pé de guerra?

Domingo é dia de almoço em família e, caro mio, se você for italiano isso significa tudo exceto um evento harmonioso.
Italianos não conversam; discutem. Não, não discutem; argumentam. Não, ainda não: polemizam.

Se você está achando convidativo te sugiro relembrar o segundo turno das últimas eleições e aí você me conta se almoçar com seus tios se esbofeteando em cima do strogonoff por Haddad x Bolsonaro não te dava refluxo.

Joga no Google. Polêmica: do grego polemikós que significa prática belicosa ou “a arte da guerra”. Guerra! Ninguém quando pensou na etimologia da palavra falou em “discussão construtiva”, “construção coletiva de um saber”, “filosofia respeitosa”... não não, a galera estava pensando em hostilidade! Guerra, sangue!


Pois é. Assim tem sido a minha refeição dominical há quase um ano. (Será por isso que emagreci?) Acabo de ter um insight nutricional! Não dá para comer com atenção plena como recomenda minha nutricionista quando seu sogro está declamando de memória o Manifesto Comunista sob olhares fulminantes de outras partes pró-USA. Ou quando os tios romanos estão discutindo sobre qualquer - juro qualquer - assunto que um membro do grupo tente iniciar.

Romanos são polêmicos. Fazem polêmica à exaustão. Por tudo e por nada. E gostam disso!

Nero é até hoje um dos imperadores mais polêmicos da história do Império Romano e do mundo. Dois mil anos depois, ainda se discute se, em 64 dC, ele estava em Anzio durante o incêndio que destruiu parte de Roma, ou se foi o responsável pela catástrofe e ficou cantando e tocando lira enquanto a cidade queimava. Nunca iremos saber. Podem discutir, argumentar e arremessar coxas de frangos uns nos outros. Ninguém nunca vai saber.

Longe de mim querer arruinar todo o progresso trazido pelo Iluminismo! Sou a favor do pensamento livre e laico, da consciência individual autônoma e do progresso. Ah, o progresso! Não vim destruir o caráter pedagógico do debate. Acho que meu pai me falou de Platão pela primeira vez eu não devia nem ter dez anos e sempre me incentivou a construir ideias de maneira independente. Nada contra o valor da controvérsia! Mas, pelo amor de Deus (esquece o laicismo agora que eu vou apelar)... porra, na hora do almoço?

O mal-estar reside já faz uns meses, mas nunca me ocorreu trazer o assunto à tona (nem no blog, nem na vida) porque me achava meio boboca por me importar com isso. “Devo ser muito intolerante”, “Eu sou chata mesmo”, “É só um abismo cultural”... E assim a gastrite foi crescendo. Até mês passado! Quando tudo mudou!

Pessoas com autoestima baixa precisam de embasamento teórico para se posicionar e comprar uma briga. Sou uma dessas. Felizmente os deuses - não os deuses belicosos e chatos da Grécia! Mas Thor e os deuses vikings! - ouviram minha prece. 

Comecei a ler sobre a cultura e a educação dinamarquesa por razões de fico-fascinada-que-esses-fdp-estão-há-40-anos-no-topo-do-ranking-de-felicidade-do-mundo e descobri uma porção (uma porção mesmo! Pesquisem!) de coisas interessantes. E, entre tantas riquezas, conheci o conceito de Hygge, a palavra dinamarquesa cuja tradução bem mequetrefe seria “aconchego”.

O Hygge é um estilo de vida dos países nórdicos que envolve uma série de adesões: criar ambientes confortáveis, investir nos laços sociais, implementar medidas de autocuidado e bem-estar para você e suas relações. Bom, e o que isso tem a ver Nero? Aí é que tá!

Os dinamarqueses acreditam que não adianta nada você acender a lareira, dividir o chocolate quente e usar pantufa fofinha se você não investir ativamente em uma comunicação hygge. Eles chegam a fazer um combinado de manter um “encontro Hygge” nos seguintes termos, saca só:






AGORA EU E MEUS AMIGUINHOS (E FAMÍLIA) ROMANOS VAMOS LER TODOS JUNTOS O ITEM 8: TRÉGUAS! “Não dramatizar (leia-se não polemizar), falaremos de política num outro dia”.


Vocês imaginam a minha alegria quando descobri que os cidadãos nórdicos (os chefões da felicidade mundial) eram meus aliados? Procurei o "manifesto do Hygge" em italiano e mostrei para o meu marido no mesmo dia. Estava a ponto de imprimir várias cópias e obrigar agressivamente os meus sogros a assinarem, mas achei que isso não seria uma coisa hygge… então decidimos começar por nós.

Faz duas semanas que eu e meu marido nos comprometemos a não polemizar durante as refeições. Isso envolve uma escolha atenta e consciente de assuntos gostosos, um cuidado intencional com as palavras e um zelo pela nossa relação. Também temos acendido velas em todos os jantares e implementamos outros detalhes que colaboram para o nosso hygge all’italiana. Não é nada fácil. Muitas vezes escorregamos e, quando percebemos, o assunto já está pesado e conflituoso (nós somos dois cabeçudos orgulhosos de sangue quente que não nascemos com os genes inatos e harmoniosos para o hygge). E nos frustramos. Mas não tem problema. Hygge é prática, é treino. Não tem derrota. No outro dia se acende uma nova vela e o exercício recomeça. Com a mesma paciência que se tem para fazer um bom chocolate quente caseiro, mexendo a panela por quinze menos até adensar.

Os domingos continuam alla romana. Com a diferença de nossa descoberta: é que para construir o Hygge também é preciso humildade. Uma paciência quase meditativa de não colocar lenha na fogueira (metafórica), por mais que você não concorde. Hygge é baixar a guarda. Lembrem-se: haverá outro momento para polemizar. Discussão não combina com digestão. Ponha fogo na lenha literal e relaxe.

Dificilmente mudarei milênios de tradição romana, mas já é bastante coisa atentar para a minha contribuição no nascimento e manutenção do conflito. Temos esperanças de implementar uma outra forma de comunicação - bem mais saudável e nórdica - em nossa casa. Para nós. E futuramente para os nossos. Gosto de pensar que seremos um pouco brasileiros, um poucos italianos… talvez até um pouco vikings, por que não? Mas por favor santifiquemos o domingo. O banquete de Platão? No meu domingo não.


O Banquete de Platão, representado por Anselm Feuerbach (1873), Alte Nationalgalerie, Berlim

giovedì 13 febbraio 2020

25. A metade cheia do café

A gente pede um cafezinho em qualquer bar romano e vem aquele disparate de 25mL de espresso na xícara de 50mL. Tudo bem que é um disparate maravilhoso, mas dá até tristeza de ver aquela metade de xícara vazia. Ou não? 


Você é a pessoa goodvibes que se deleita com o sabor divino do café fortíssimo (e escasso) italiano? Ou é a lamuriosa que se compraz em reclamar da ausência de abundância do líquido? Se você também ticou a segunda opção, benvenuto ao time! 

Estou há dois meses tentando escrever esse texto. Dois maledetto's meses! Psicanalistas diriam que é resistência. E eles estão certos.
É que me comprometi a fazer um texto elogioso da minha nova - nem mais tão nova assim - cidade. Decidi me enraizar em Roma, me exercitar ao pertencimento: pensei em estudar a história do império romano, comprar um dicionário de vocábulos do dialeto local, virar uma especialista da carbonara… mas achei tudo forçado. E então considerei que as metas pequenas poderiam ser muito mais genuínas e eficientes, daí a ideia do texto lisonjeiro para Roma. Ed eccomi qua, completamente despida de enciclopédias, mas apostando muito no meu novo olhar! No que vejo e no que dou a ver:

Cortei o cabelo radicalmente. Dei a ver os cachos! Já havia tentado a transição capilar duas vezes no Brasil e falhei em ambas. No país do progressiva (piastra brasiliana, como a chamam aqui) é difícil não se render à química. Crescemos ouvindo que cabelo crespo é cabelo ruim (reflitam sobre a escrotice desse termo) e os apelos são constantes para o alisamento. Lembro de todos os elogios que recebia quando aparecia com o cabelo chapado (em todos os sentidos!) Poveri cappelli… Pois bem. Aqui, desde que adotei o look cespuglio (arbusto em italiano) virei a sensação do momento. Meu marido decidiu que me ama dez vezes mais, as funcionárias da escola da minha rua se apaixonaram pelas minhas madeixas e a mãe das crianças que acompanho daria tudo para ter um mísero cacho. Os italianos amam o volume e, ainda mais importante, amam o natural. Cabelos devem ter vontade própria, seios não devem ser redimensionados sem motivo, dentes devem ser consertados apenas por saúde. Branqueamento, plásticas estéticas e alisamentos são coisas bastante bizarras para meus novos compatriotas e Deus os abençoe. Devo dizer que para um nariguda de peitos pequenos e “cabelo de arbusto”, eu não poderia estar em lugar melhor! Ponto pra Bota!

A comida aqui é maravilhosa, os vinhos são indecentes de bom e… (pausa para um agradecimento silencioso): A ÁGUA É ÓTIMA E GRATUITA! Só quem morou no ABC paulista e teve que pagar pela água e por seu controle de qualidade sabe da benção que é ter água delícia a custo zero. Caminho pelas ruas e tropeço em fontanas fresquinhas com uma das águas de melhor qualidade da Europa. Toda acessível, toda minha. Se isso não é democracia, eu não sei o que é. Ponto pra Bota!

As paisagens da Itália são versáteis e lindas de tirar o fôlego. Tem de tudo: das praias paradisíacas da costa sul aos alpes da fronteira suíça. Tudo isso passando por montes, vulcões, lagos, rios, florestas, jardins, castelos e cidades encantadoras e cheias de personalidade. 
Roma tem muita identidade! Seus monumentos resplandecem de história e reluzem à luz dos sol. Sim, porque aqui tem sol! Aliás, arrisco dizer que a Itália tenha uma dos melhores climas da Europa. Sua geografia mediterrânea proporciona inverno curtos e dias ensolarados no ano inteiro, inclusive no frio (que nem é tão frio assim). Esse ano eu ainda nem usei luvas! Ponto pra Bota!

Estou achando meu texto meio inútil. Nada do que foi dito aqui é novidade e poderia ser facilmente encontrado num guia de viagens. É que guardei o melhor pro final! Te contei que aqui é lindo, gostoso, que se come bem, que é ensolarado pra dedéu e agora te conto que os verões de Roma são calorosíssimos! Pode bater os 40 graus! É tipo o Rio de Janeiro só que melhor, porque aqui não tem… aqui não tem uma coisa muito horrorosa, muito perigosa e assustadora. Preparem-se, leitores meus… (prevejo uma grandessíssima imigração para a Itália após esse texto): aqui não tem BARATA! Sim, vou repetir porque essa é a melhor vantagem que encontrei em morar em Roma até agora: Apesar de fazer um calor do cão, de ser abafado, de rachar o coco, de ter mosquito e o pacote (quase) completo do verão, os deuses romanos se esqueceram de inventar a BARATA ROMANA! Juro!

Eu moro no primeiro andar de um predinho que parece mais casa do que apartamento. É tudo aberto, tem jardim, tem ralo e tem lixo (tem muito lixo aqui, tipo MUITO. Mas isso não é elogioso então esse assunto não pode ser desenvolvido nesse texto). Voltando: apesar da combinação perigosíssima de calor infernal + sujeira, por alguma razão mística e abençoada, as baratas não têm acesso a Roma. Seria a quantidade de gatos da cidade que as espanta? A grosseria dos romanos?(ops, não é elogio) Teriam sido mortas pelos gladiadores? Júlio César as expulsou há 2000 anos? Caros leitores, nunca saberemos. Na real, eu nem estou interessada em saber. Só sei que ganhou o ranking dos pontos positivos italianos desde o verão passado e a prioridade absoluta das minhas orações de agradecimento. Primeiro agradeço a ausência de baratas, depois a carbonara, depois a minha saúde. Deus me entende, não me julga. Talvez não o Deus brasileiro (porque ele também usa Raid!), mas os deuses romanos todos me entendem. Inclusive me prometeram que, se eu continuar me empenhando em não reclamar e em enxergar a metade cheia do ristretto, continuarei a dormir sem tensão e sem chinelo na mão na próxima estação.


Amém! E ponto pra Bota!





venerdì 13 dicembre 2019

24. Dimora

Embarco amanhã para o Brasil para passar as festas de fim de ano. Quanta demora! Depois de nove meses de Roma a minha saudade não aguenta mais a gestação! Não dá mais para morar só dentro de mim tanto amor tropical, tanto amigo pra ver, tanto raio de sol! Hoje cedo nevou em Torino… tô fora! Acabei de passar o zíper na mala, sem demora! Vai que a neve se alastra e me alcança os calcanhares antes que eles deixem o solo italiano...vai quê. Mas ainda preciso dormir, preciso comprar o Grana Padano da Ana, o vinho do nonno. Por que tanto tempo?

A escala é de 10 horas em Istambul!!Dez horas! Pois é, falando em demora...

Demorar é um verbo curioso. Já tentou falar “demorar” em outra língua? Com uma só palavra. Roubalhão! Expressão não vale!

Provavelmente você chegou em algo como “tomar muito tempo”, “atrasar”, “adiar”... nope! Não aceito. Nada disso é demorar. Demorar é lindo demais… e é complexo. Você seguramente demoraria a encontrar um sinônimo para a demora… De bate-pronto a única possibilidade é o fracasso. Porque na demora não se pode ir apressado. É preciso habitar esse termo, residir em suas sílabas até encontrar alguma saída demorada. De morada.

Em italiano, “demorar” não existe. Não que eles sejam ágeis ou pontuais. Muito pelo contrário! Mas o verbo é inexistente. Dir-se-ia que uma atividade atrasa, dura… ou então que é preciso tanto tempo para executá-la. Que se quer tanto tempo para fazê-la. Tudo muito intuitivo, muito bonitinho... mas demora mesmo que é bom, nada!

Entretanto, existe “dimora”. Dimora em italiano é a morada. Dimora de morada, demorada. Obviamente, não é preciso muito para sacar que “demora” e “dimora” possuem ambas a mesmo etimologia latina “demorare" que, por sua vez, significa habitar de maneira mais ou menos estável um lugar, estabelecer-se, demorar-se.

Se você vai passar só uns diazinhos na cidade e vai ficar num hotel, semanticamente aquela não pode absolutamente ser a sua dimora. No, assolutamente! A morada implica um alastrar-se, delongar-se...temporizar. A morada, para os linguistas, implica demora. Demora para morar.

Demora para aprender a língua, para conseguir os documentos. Demora para conseguir o diploma e o trabalho. Demora para fazer amigos. Demora para amar. O amor demora.

Depois de quase dez meses, talvez eu ainda não tenha conseguido fazer de Roma um lar. Não me demorei o bastante. Talvez também por isso minha enorme animação em passar férias em casa (essa sim) onde vivi quase três décadas.

Nós, expatriados, queremos que o lar se constitua no tempo de nossos desejos. Mas aí vem o latim (te amo, latim) e nos conta que a tempistica aqui é outra. 

Não é pra já...mas já inicia a demorar-se… E assim se faz molto piano a minha morada, nas curvas do tempo deRoma... ops, demora.







sabato 30 novembre 2019

23. Tanti auguri.

Semana passada o sol entrou em sagitário e começaram os parabéns dos mais festeiros do zodíaco. Saquei o celular, liguei para a amiga, mandei textão, mandei audião, quase fiz post com foto nossa no instagram (só não fiz porque tô velha, até uns 28 eu ainda fazia aquelas breguices deliciosas…) mas a farra foi total! Até na distância:


“Tudo de bom! Felicidade, saúde, paz, dinheiro, trabalho, amor, sexo, alegria, muitas comemorações (...) blá blá blá”. Cantei parabéns em quatro línguas diferentes e desejei tantas coisas que, lá pelas tantas, estava na dúvida se ela ainda estava na linha. Ela estava, ufa! Agradeceu de todo coração, desejou tudo em dobro pra mim (o aniversário era dela!), rimos, abraçamos a tela, puro amor!

Meu marido achou esquisitíssimo. Assim como todas as nações acham esquisitíssima a duração do “Parabéns pra você” em português. Já reparou?

Os gringos ficam naquela repetição xexelenta de “happy birthday to you, dear friend” que deve durar no máximo 10 tediosos segundos, enquanto os brazucas vão noite afora com as horas, os piques e os rá-tim-buns!

Tem versão censurada pornô também.

Tem “o azar é dela que fica mais velha”.

E tem “com quem será”. 

E tem versão gritando “hey” a cada fim de frase.

E, para quem achar pouco, a gente ainda pede para subir na mesa, fazer discurso, cortar o bolo, fazer pedido e entregar o primeiro pedaço para alguém especial. 

(Tô com dó dos brasileiros que são introversos)

O fato é que a gente capricha nos parabéns! É comemoração para ninguém botar defeito!

Mesmo os mais tímidos se esforçam para mandar um textinho caprichado, às vezes arriscam uma mensagem de voz... Poxa vida, é importante! Você deu mais uma volta ao redor do sol e, em tempos tão difíceis como os nossos, ninguém merece começar mais um ano sem votos de amor e felicidade de seus entes queridos. Certo? Più o meno.

Se você não tivesse recebido a bem-aventurança aniversarianística de ser parido em terras brasileiras, você não estaria tão certo disso. Vou te contar um segredo: os italianos não sabem fazer votos. hihihi

Aliás, eles sabem! Sabem até demais, sabem ao pé da letra.

Ao comemorar seu aniversário na Itália, você receberá apenas um “Tanti auguri” e ponto. Isso mesmo: ponto. Final ou de exclamação. Dificilmente vai vir algo depois disso.

“Tanti auguri” são os “parabéns” all’italiana que, literalmente, seria algo como “tantos votos”. A incoerência é que eles não fazem os votos! Pensou que coisa doida?!
Você fala: “Tantos votos para você” e não faz o raio dos votos! Não faz sentido algum! Que votos?

Compreendi isso a duras penas. Em setembro aniversaria o homem que escolhi para chamar de meu e eu tenho duas difíceis missões nessa época:

1. Comprar presente para um virginiano (que, em geral, são os mais “cri cri” das constelações)

2. Fazer meus votos a um italiano que não está acostumado com delongas nessa hora

Esse ano, quando deu meia-noite, pausei o filme, abracei, beijei, peguei o presente e disse meia dúzia de palavras fofinhas (já sabendo que ele ia achar muito bizarro o meu discurso). Acho que ele gostou, mas ficou sorrindo meio sem reação; claramente mais interessado em abrir o presente e em devorar um possível bolo que não teve (desculpa, amor, não sei fazer doces) do que na minha tagarelice.

Andrea é romântico até os ossos, então não era falta de sensibilidade. É só um costume chocho deles… (ou uma tradição efusiva nossa?)

Perguntei para uma amiga paulistana que morou em Roma e ela confirmou! A maluca ficou tão intrigada com a apatia do então namorado italiano que foi verificar no facebook dele como os italianos se parabenizavam! (Tem alguém mais louca que eu!) E qual não foi sua surpresa - e alívio - quando ela leu diversos… muitos…muitos mesmo... tipo TODAS as publicações assim:

Tanti auguri.

Tinha também: 
Tanti auguri!

E os mais calorosos:
Tanti auguri! Bacione.

Nada de votos de felicidade, nada de desejar dinheiro e saúde pro amiguinho! 

É, minha gente brasileira, precisamos ensinar o mundo a fazer votos. 
Talvez eles já tenham demais.
Talvez a escassez brasileira nos tenha feito desejantes.
Ou talvez a gente só seja mais fofo.
Mais doidos?
Mais foliões?

Não sei. Só sei que eu gosto assim mais fanfarrão! Fanfarrões como os sagitarianos! 

Inclusive aproveito para deixar os meus parabéns para todos os aniversariantes do mês com muita paz, saúde, amor no coração, dinheiro no bolso, muitos anos de vida…rá tim bum! Com quem será que você vai casar? 

Sei não. Mas se quiser textão, não casa com italiano!



Imagem: shutterstock.com




domenica 27 ottobre 2019

22. Meu casamento arranjado

Que prática cruel essa iniciativa de unir dois seres sem seu consentimento. Pior ainda é encarar a obrigação de que, em pleno século XXI, um amor te faça renunciar ao outro. Desejei a bigamia. Mas era crime, tanto na Itália quanto no Brasil. Aí trouxe minhas tralhas e meus gatos como dote e me entreguei… a ela.


Pois é, meus amigos. Eu, que sempre fora acostumada com um jovem e masculino país, me vi conceder a uma senhorinha decrépita e em desuso. Uma terra anciã e feminina!

Eu, que sempre estivera circundada da virilidade de André, Bernardo, Caetano e Paulo (todos santos, ok, mas deixem-me fantasiar que eram varonis!), me vi desembarcar nos braços de Roma. A velha charmosa - mas nem por isso menos caduca - da Europa. Aí se consumou meu casamento arranjado.

Ao contrário dos casamentos por amor, as núpcias da união forçada são violentas, do tipo goela abaixo. São duras, frias e sem romantismo. Uma verdade nua e crua do tipo: “Agora somos nós duas. Descubra-me e aceite-me. E se possível, faça o melhor que puder de mim”. Estava selada a união.

No casamento arranjado a realidade te assola sem meios disfarces. O cônjuge já vai, logo de partida, se mostrando como é e fica a nosso encargo a destruição dos ideais infantis e esperançosos pré-nupciais.

Quis minha esposa mais limpa. Ela era suja e fedia desde o primeiro dia. Reclamações não mudaram seus hábitos.

Eu a quis mais gentil e custei a compreender que os anos de Imperatriz a tinham feito vigorosa e dominadora. Minha senhora ainda se achava kaputt mundi e gentileza nem tinha boa cadência em língua italiana. 

Eu a quis mais organizada. Desejei tanto que a parceria me ajudasse a lidar com minha desordem. Mas Italia foi, desde a cerimônia, um caos avassalador que confundia ainda mais a pouca disciplina que eu havia herdado de Brasil. 

Eu a quis mais humilde. É que eu vinha de uma história de complexo de inferioridade: com Brasil, aprendemos sempre que o jardim do vizinho é mais verde, que no estrangeiro tudo é mais legal e que fora as coisas funcionam. Meu povo anda olhando pro chão. Roma anda olhando pra cima, para os monumentos que conquistou e construiu ao longo do tempo e, com seu olhar colossal, tende a diminuir o outro. Eu tinha vergonha de ter uma mulher arrogante. O que minha família e meus amigos iriam achar quando viessem me visitar?

Queria que ela fumasse menos.

Queria que não fosse tão machista…

Queria tantas coisas...


Acontece que a união estava feita. E, em nome dela, residia um amor ainda maior: dessa vez um homem. Maravilhoso. 

Um outro André - não o santo da cidade de origem - mas um homônimo e valioso presente que ganhei de Senhora Italia com as bodas. E por esse amor eu topava aceitar a vecchia bacucca*. O amor viria com o tempo, mas pelo menos aceitar já seria meia jornada andada. Se não conseguisse, va bene. Estávamos dispostos a assinar o divórcio com a soberana e buscar outra união que nos permitisse estar em paz. Mas o divórcio - como acredito - deve ser sempre l’ultima strada.

Tenho me inspirado na cultura hindu que, diversamente de nós filhos da jovem América, aposta tanto nas pequenas construções diárias. Após o aval dos astros e a benção dos deuses falta só dizer “bom trabalho!”. Trabalhar é lavoro. É lavorare, elaborare. Como em uma Psicanálise, a cada um a tarefa de descobrir como salvará a si mesmo (não me recordo as exatas palavras de Freud), mas a ideia é essa aí. Então bora trabalhar:

Já sou capaz de ter uma compreensão mais justa de minha companheira. Entendi que, muitas vezes, sua agressividade não é hostil, é simplesmente o dinamismo que a História lhe ensinou a ter. E posso recebê-la assim.

Continuo rejeitando os cigarros em todos os cantos, mas já tenho contado para todos os filhos da Signora Italia como é lá no nosso jovem Brasil e aí - ironicamente - a nacionalista orgulhosa viro eu.

Ainda não aprendi a amar o inverno - filha dos trópicos que sou -, mas já sou capaz de apreciar o clima mediterrâneo e quando vejo fotos de amigos encapotados em Londres, Viena ou Montreal, lembro que estou só de jaquetinha e que a véia é até que quentinha.

Sua experiência e velhice têm me transmitido segurança e amo andar por suas ruas à noite. Posso até estar sozinha! Lembro que Brasil não me deixava fazer isso e agradeço a algum deus romano de mármore enquanto passeio por suas praças.

Até em sua bagunça tenho encontrado contorno e escrever isso me parece um milagre. Dos impedimentos burocráticos nasce um novo e inesperado trabalho. Do pisotear nasce o vinho. Da lama nasce a lótus.

A aceitação parece ser mesmo um dos indispensáveis do matrimônio. Ao acolher o incômodo, inicia-se a digestão do mal-estar abrindo espaço para novas deglutições. E nesse espaço criado a partir do assentimento pode brotar uma infinidade de contingências favoráveis.

Outro dia me peguei admirando as maritacas; as mesmas baixinhas histéricas de quem sempre me queixei. E elas me pareceram mais verdes.
Tão verdes quanto o pesto que meu marido prepara. Sinto o perfume caminhar da cozinha para o corredor… e acabo de atinar que não falei das habilidade gastronômicas de minha nova união!

Quantas mais coisas será que esqueci de botar reparo?

* Vecchia bacucca: velha caduca

Tatuagem em alfabeto tibetano "Da lama nasce a flor-de-lótus" por @mcapocci

domenica 22 settembre 2019

21. Saber morrer

(No mês nacional de prevenção ao suicídio, ofereço a reflexão de minhas mortes possíveis. Nossas mortes constantes e superáveis a favor da vida!)


Meu último post tem mais de um mês, meu blog entrou em coma. Acaba de acordar e, aos poucos, retomamos as funções vitais. É preciso saber morrer. 

Os Titãs que me perdoem. Pode ser muito útil e maneiro aprender que a rosa com espinho pode te arranhar ou desenvolver a capacidade de remover a pedra no caminho... Escolher entre o bem e o mal. Saber viver. Entretanto, sinto quase intuitivamente que essas tendem a ser competências adquiridas mais fácil e precocemente. Viver é inato. Ao nascer, vive-se. É inerente à condição de ser-aí-no-mundo.

Mas o morrer… ah, o morrer. 

“Perdi” uma prima querida nesse período de coma do blog. Digo “perdi” pois não acredito em perdas humanas. Gosto de pensar em uma loira cacheada nadando e sorrindo à beça nos mares do Céu. É a cara dela. Quase ouço a risada…. e meu coração experimenta sensações indescritíveis de joia e pesar.

A morte nos traz isso. Ano passado, morreu um de meus amigos mais amados. Foi uma experiência extra-ordinária, inefável. Indizível. Na ocasião, uma amiga minha, ao me consolar, conseguiu dizer algo (pouco, mas algo) em meio a esse indizível todo: me desejou força e fé; e que eu aproveitasse a experiência, pois a morte nos trazia fenômenos únicos e incomparáveis. São efeitos que nada em Vida consegue oferecer. A morte porta milagres inéditos.

Graças aos deuses há lugares especialíssimos - dentro e fora de mim - para cada um dos amores que enterrei. Permito que descansem e renasçam como a Vida exigir.

E junto a eles enterro um pouco de mim. Também eu morri esse ano.

Mudar-se é extinguir-se. É deixar se esvair a existência antiga. É desconstruir a casa, desatar alguns laços, deixar ir pessoas, findar trabalhos. É morrer em mil e uma maneiras.

Deixei o Brasil no primeiro dia de abril. O outono - senhor sazonal proclamador das quedas - começava a dar as caras. Obrigava-me ao desapego dos cabelos, das peles e dos móveis. Em cada abraço de despedida ficava um pouco de minhas células, serpente mutante de epidermes que somos impelidos a ser.

Abandonei o hemisfério sul, mas o outono teimou em me acompanhar internamente. Ceifando tudo o que era folha seca, esse sacerdote da morte aniquilava expectativas ilusórias, caprichos infantis, apegos mesquinhos. Tive que deixá-lo exterminar as minhas vontades impossíveis, meus ideais neuróticos de cidade perfeita, minhas projeções (inocentes) de vida adulta, minhas promessas adolescentes de vida a dois.

Senhor Outono levou tão a sério a história do extermínio que me tirou 6 quilos, me roubou tapiocas e abacates, me escondeu minha própria língua! Um louco varrido varredor de tudo o que seca. Tome cuidado! Mas receba as bençãos…

Depois do aniquilamento vem o alívio e a limpeza das lentes. O milagre da visão sem a miopia pueril e antiga. Vem o amor real, o trabalho verídico, o casamento sem disfarces. O ideal é substituído pelo possível.

Amanhã, no meu país de origem, começa a primavera. Tenho apostado nessa Rinascita.

E, se aqui no hemisfério norte, o outono se obstinar a me seguir para uma “dobradinha anual” do declínio, va bene. Sono pronta.


Meu útero morre e renasce todo mês.

Meu couro descama.

Os budistas choram quando nasce uma criança e se rejubilam quando alguém se vai naturalmente.


Quintana já sabe que o importante é saber morrer… e continuar vivendo.






sabato 17 agosto 2019

20. Sobre distâncias

Roma localiza-se em uma posição geograficamente privilegiada; é uma cidade cosmopolita que tem toda a versatilidade da natureza a “meia horinha”: praia, campo, lago e o que você quiser imaginar. Apenas a neve poderia ser considerada um pouco mais inacessível. Ainda assim, em um pouco mais de uma hora os romanos têm acesso aos flocos mais poéticos do meio ambiente. Uma hora.

A maioria dos paulistanos, em apenas uma horinha, não chegam nem no trabalho. Em uma hora, os italianos vão e voltam.



Durante seis anos de faculdade, gastei três horas diárias em locomoção. Fosse privada ou publicamente, lá estava eu enlouquecendo de tédio e ansiedade em cima do Minhocão. Ônibus Perdizes, Metrô Linha Vermelha, Trem até o Brás. Bilhete Único no bolso e fé no coração: 1h30 para ir, 1h30 para voltar. Com sorte. De carro a situação não mudava e, para piorar, não dava para estudar. Se eu reclamava? Óbvio, aquela lamentaçãozinha típica rotineira paulistana, mas com a submissa resignação de que nada iria mudar. Afinal, todo mundo passa por isso... e Paula Toller - que é carioca, mas também sabe dos paranauê - me complementaria: “por que não eu?”

O Brasil tem 8.516.000 Km²; aqui a galera não tem medo da distância. Faz bate-volta para praia com sorriso largo, vale o esforço. 
Lembro-me da primeira vez que meu gringo veio me visitar no Brasil. Toda orgulhosa (paulista sente orgulho de Ubatuba), anunciei que iria apresentá-lo ao litoral norte de SP ou “paraíso na Terra”, como preferir. Tudo isso pelo simples preço de aproximadamente 5 horas de carro. Estava um transitinho mas não era feriado, então tudo estava sob controle. Em menos de seis horas conseguiríamos chegar até Paraty (que já é no Rio, mas o orgulho continua). Meu comunicado foi feito com entusiasmo, de modo que eu não conseguia compreender os olhos arregalados de desespero de meu futuro cônjuge:

“Cinque ore??? Ma sei scema?”*

Em seis horas ele vai de Roma até a Suíça, então ele devia mesmo estar me achando uma maluca completa. “Eu fiquei onze horas num avião para essa doente mental me aprisionar em um carro por mais seis horas?”. 
Felizmente, o amor triunfou. Ubatuba estava linda, como sempre.

O ponto fundamental é que o espanto de Andrea sempre me produz reflexões. Seus olhos perplexos me denunciam uma realidade a ser avaliada (lamentada? repensada?). Talvez eu não fosse desequilibrada por me estressar com o trânsito até a PUC… talvez nenhum ser humano fosse programado para suportar isso. Só que a dinâmica preestabelecida da classe média (e das outras também…) nos convenceu que sim.
Infatti, li recentemente uma pesquisa que afirmava que um dos fatores mais importantes para manter a saúde mental nas grandes metrópoles era trabalhar perto de casa. Meu companheiro assina tão embaixo que ele trabalha em casa. Beato lui.*

Sei sei. Isso não se aplica à realidade da maior parte dos brasileiros e não pretendo resolver a questão com essa crônica despretensiosa (embora eu recomende fortemente que, se você tem a mínima condição de diminuir os quilômetros, faça-o!), mas o meu convite é que a inspiração romana nos desafie a encurtar as distâncias do prazer.

A beleza bem que pode residir logo ao lado. Conheça seu bairro. Compre do pequeno, dos amigos artesãos. Acaricie os cachorros de rua. Conserte você mesmo. Se o restaurante é longe, faz o jantar romântico em casa mesmo. Plante uma árvore no seu lar, para não faltar Oxóssi quando não der para ir ao Ibira. Se Campos do Jordão virou hippie-chic mas o seu bolso não, leva o chocolate para derreter na casa dos brothers. Não precisa ir sempre na manicure, reúna as primas em casa. More perto de quem você ama. 

Sou hipócrita, não moro perto de todos que eu amo. Foi a parte que Roma me tirou da "meia horinha" de acesso. Nevrose incurável querer ter tudo... Mas o fim do ano com os amados já está na programação e será zero europeu. Adivinha para onde vamos? Sim sim, a galera escolheu Parati. Para mim. Para nós. Andrea já está se coçando e provavelmente baixando toda a discografia do Queen. Mas estamos felizes à beça. Paulista sabe bem, há amor também nas distâncias.


* Cinque ore? Ma sei scema?: Cinco horas? Você é louca?
* Beato lui: Sorte dele. Abençoado é ele.



Abril de 2018, Ubatuba