domenica 27 ottobre 2019

22. Meu casamento arranjado

Que prática cruel essa iniciativa de unir dois seres sem seu consentimento. Pior ainda é encarar a obrigação de que, em pleno século XXI, um amor te faça renunciar ao outro. Desejei a bigamia. Mas era crime, tanto na Itália quanto no Brasil. Aí trouxe minhas tralhas e meus gatos como dote e me entreguei… a ela.


Pois é, meus amigos. Eu, que sempre fora acostumada com um jovem e masculino país, me vi conceder a uma senhorinha decrépita e em desuso. Uma terra anciã e feminina!

Eu, que sempre estivera circundada da virilidade de André, Bernardo, Caetano e Paulo (todos santos, ok, mas deixem-me fantasiar que eram varonis!), me vi desembarcar nos braços de Roma. A velha charmosa - mas nem por isso menos caduca - da Europa. Aí se consumou meu casamento arranjado.

Ao contrário dos casamentos por amor, as núpcias da união forçada são violentas, do tipo goela abaixo. São duras, frias e sem romantismo. Uma verdade nua e crua do tipo: “Agora somos nós duas. Descubra-me e aceite-me. E se possível, faça o melhor que puder de mim”. Estava selada a união.

No casamento arranjado a realidade te assola sem meios disfarces. O cônjuge já vai, logo de partida, se mostrando como é e fica a nosso encargo a destruição dos ideais infantis e esperançosos pré-nupciais.

Quis minha esposa mais limpa. Ela era suja e fedia desde o primeiro dia. Reclamações não mudaram seus hábitos.

Eu a quis mais gentil e custei a compreender que os anos de Imperatriz a tinham feito vigorosa e dominadora. Minha senhora ainda se achava kaputt mundi e gentileza nem tinha boa cadência em língua italiana. 

Eu a quis mais organizada. Desejei tanto que a parceria me ajudasse a lidar com minha desordem. Mas Italia foi, desde a cerimônia, um caos avassalador que confundia ainda mais a pouca disciplina que eu havia herdado de Brasil. 

Eu a quis mais humilde. É que eu vinha de uma história de complexo de inferioridade: com Brasil, aprendemos sempre que o jardim do vizinho é mais verde, que no estrangeiro tudo é mais legal e que fora as coisas funcionam. Meu povo anda olhando pro chão. Roma anda olhando pra cima, para os monumentos que conquistou e construiu ao longo do tempo e, com seu olhar colossal, tende a diminuir o outro. Eu tinha vergonha de ter uma mulher arrogante. O que minha família e meus amigos iriam achar quando viessem me visitar?

Queria que ela fumasse menos.

Queria que não fosse tão machista…

Queria tantas coisas...


Acontece que a união estava feita. E, em nome dela, residia um amor ainda maior: dessa vez um homem. Maravilhoso. 

Um outro André - não o santo da cidade de origem - mas um homônimo e valioso presente que ganhei de Senhora Italia com as bodas. E por esse amor eu topava aceitar a vecchia bacucca*. O amor viria com o tempo, mas pelo menos aceitar já seria meia jornada andada. Se não conseguisse, va bene. Estávamos dispostos a assinar o divórcio com a soberana e buscar outra união que nos permitisse estar em paz. Mas o divórcio - como acredito - deve ser sempre l’ultima strada.

Tenho me inspirado na cultura hindu que, diversamente de nós filhos da jovem América, aposta tanto nas pequenas construções diárias. Após o aval dos astros e a benção dos deuses falta só dizer “bom trabalho!”. Trabalhar é lavoro. É lavorare, elaborare. Como em uma Psicanálise, a cada um a tarefa de descobrir como salvará a si mesmo (não me recordo as exatas palavras de Freud), mas a ideia é essa aí. Então bora trabalhar:

Já sou capaz de ter uma compreensão mais justa de minha companheira. Entendi que, muitas vezes, sua agressividade não é hostil, é simplesmente o dinamismo que a História lhe ensinou a ter. E posso recebê-la assim.

Continuo rejeitando os cigarros em todos os cantos, mas já tenho contado para todos os filhos da Signora Italia como é lá no nosso jovem Brasil e aí - ironicamente - a nacionalista orgulhosa viro eu.

Ainda não aprendi a amar o inverno - filha dos trópicos que sou -, mas já sou capaz de apreciar o clima mediterrâneo e quando vejo fotos de amigos encapotados em Londres, Viena ou Montreal, lembro que estou só de jaquetinha e que a véia é até que quentinha.

Sua experiência e velhice têm me transmitido segurança e amo andar por suas ruas à noite. Posso até estar sozinha! Lembro que Brasil não me deixava fazer isso e agradeço a algum deus romano de mármore enquanto passeio por suas praças.

Até em sua bagunça tenho encontrado contorno e escrever isso me parece um milagre. Dos impedimentos burocráticos nasce um novo e inesperado trabalho. Do pisotear nasce o vinho. Da lama nasce a lótus.

A aceitação parece ser mesmo um dos indispensáveis do matrimônio. Ao acolher o incômodo, inicia-se a digestão do mal-estar abrindo espaço para novas deglutições. E nesse espaço criado a partir do assentimento pode brotar uma infinidade de contingências favoráveis.

Outro dia me peguei admirando as maritacas; as mesmas baixinhas histéricas de quem sempre me queixei. E elas me pareceram mais verdes.
Tão verdes quanto o pesto que meu marido prepara. Sinto o perfume caminhar da cozinha para o corredor… e acabo de atinar que não falei das habilidade gastronômicas de minha nova união!

Quantas mais coisas será que esqueci de botar reparo?

* Vecchia bacucca: velha caduca

Tatuagem em alfabeto tibetano "Da lama nasce a flor-de-lótus" por @mcapocci