martedì 12 marzo 2019

4. O céu de Roma é mais azul

“O céu de Roma é mais azul” disse-me certa vez, antes de eu conhecer a capital italiana, uma de minhas mais caras amigas. Ela é poética, bibliófila, apaixonada pela Itália e sabe citar Bethânia de cor; é daquelas pessoas viscerais até o último fio de cabelo. Por essa razão, achei mega convidativo ir para uma cidade com céu extra-azul, mas mantive aquele pé atrás de quem tem a sanidade de duvidar dos românticos. 

Arrasei! Baixar as expectativas fomentam surpresas! Não é que a danada estava certa? Olha, se é mais azul eu não sei… mas que a cidade dá um show de cores no entardecer, aí eu vou ter que assinar embaixo. Céticos dirão que é porque a gente aqui em SP está sempre enfurnado em prédio e que, quando sai, tem arranha-céu e monóxido de carbono para tapar a visão. Eu prefiro pensar que Roma é mágica.

Nas quatro estações a Cidade Eterna é um desbunde. Por trás de pontes e monumentos milenares explodem combinações policromáticas que nenhum arco-íris brasileiro jamais reproduziu (estou exagerando. Em Foz do Iguaçu também é assombroso, mas o blog é de Roma, vou puxar a sardinha…) O fato é que é um céu bonito pra valer e eu não canso de me surpreender. Ter céu maneiro é tão vantajoso que torna até o momento de esperar ônibus menos ansiógeno. Roma distribui presentes.

Mas como eu disse no último texto, não tem ganhos sem perdas, vero? E isso ela (minha amiga fã da Bethânia) omitiu. Os românticos sempre omitem o lado B da história para te seduzir!

Roma não é apenas aquela que presenteia. Roma é a boa mãe que alimenta e que pune, é o psicanalista que te acolhe e depois te castra. Roma te dá todos os matizes celestes para depois mandar a conta. E ela chega… junto com o ônibus:

Busão às seis da tarde no centro de Roma. Eu maravilhada com o tramonto quase não o vejo chegar. Subo. Esquema de sempre: ficar em pé, balançar, gente sem desodorante. Foda, mas estou bem. Sou paulista e tolerante a muito mais do que você pode me apresentar, Roma. Roma querida, você sabe o que é Sé?? Pois é. Sigo plena paquerando as ruas que passam pela fresta da janela que consigo ver em meio às axilas. A viagem continua e começo a me dar conta que apenas eu continuo plena naquele ônibus. Meus colegas-passageiros se exaltam (mais do que os italianos costumam se exaltar por natureza - que já é bastante!) e a algazarra se instala. Em meio a blasfêmias e “vaffanculos” concentro-me empenhada no exercício de ascolto a fim de compreender os nativos.

E compreendo! Minha professora ficaria feliz! Mas eu estou perplexa… tudo indica que estamos indo pelo caminho errado. Alguns mais ansiosos (e me admiro por, pela primeira vez na vida, não estar nessa categoria) já começam a descer do ônibus; não sem antes xingar o motorista. Pergunto a uma estudante espremida no mesmo cantinho que eu se ela poderia me explicar o que estava acontecendo. Muito raivosa, a universitária rosna um “benvenuta in Italia” e se põe a lamentar da precariedade do sistema de transporte em Roma, diz que já morou em Londres e blá, blá, blá… que só na Itália as coisas são uma merda e que provavelmente mudaram a rota dessa linha. Sorrio maliciosa e quero quase convidá-la a passar uma temporada no Brasil, mas sou interrompida. Um rapaz tem outra teoria sobre o ocorrido: “Acho que o motorista errou o caminho”.
Travei
Ele ERROU O CAMINHO?
Cristo Santo! Isso existe aqui?

Os outros romanos endossam a hipótese. “É, ele deve ter se confundido. Ao invés de fazer o percurso do 417, está fazendo o do 915B*.”

Gente, como assim?? Os motoristas de Roma ERRAM o caminho? Isso existe?

Isso é tipo eu confundir a história de vida de dois pacientes! É tipo o médico amputar a perna do cara com apendicite! É tipo eu anunciar um texto sobre a aurora boreal e subitamente surpreender-vos com a economia em transição do Vietnã!! Como assim o motorista tinha que ir para norte e está nos levando para sul? E vocês estão achando normal?

Vale um parêntese aqui para informar-vos que “motorista” em italiano se diz “autista”. Proprio così. Não é uma piada. Estou pensando nesse termo muito seriamente. Sou metida à fanfarrona, mas jamais faria humor com isso, até porque trabalhei muito com autistas, vários deles ganharam meu coração para todo o sempre e, apesar de não conhecer muitos motoristas de ônibus, não tenho nada contra eles. E generalizações são escrotas.

Feito o parágrafo em minha defesa, vos convido a pensar comigo essa maluquice de palavra. Autista tem como prefixo autós de etimologia grega que significa “si mesmo” e foi usada pelo psiquiatra alemão Bleuler em 1908 para se referir à escassa interação com outras pessoas em pacientes esquizofrênicos. Obviamente, a língua italiana não se reportava a transtornos psiquiátricos quando pariu a sua palavra “autista” para condutor; chuto intuitivamente que esse auto se reporte aquele de automóvel, aludindo à noção de veículo. Beleza, é meio óbvio. Mas então que sentido faz ser auto? Por que em relação a si mesmo?

O motorista de ônibus não é o cidadão comum que conduz o AUTOmóvel, o móvel de e para si próprio. Esse grande funcionário público guia o ALTERmóvel! (alter do latim “aquele que é o outro, o não-eu”, daí advém alteridade, alter ego, etc). Em teoria (porque muitas coisas ficam apenas no campo teórico em Roma… sounds familiar, Brazil?) e somente em teoria, o autista deveria dirigir para o coletivo, para o popular, para o BEM comum (claramente não estávamos bem). Assim, seria extremamente conveniente que transmutássemos o auto em alter (penso igualmente que no caso do tratamento do autismo - condição psíquica - é justamente o alter que pode trazer um novo olhar, mas essa é outra história…)

O fato é que o sujeito que nos transportava aquele dia era mais ensimesmado que qualquer paciente que já cruzou a minha história e o moço se ateve fielmente ao termo italiano. Nunca saberemos o que aconteceu: se ele estava desviando de um buraco (comum em cidade histórica) e mudou a rota, se acordou de ovo virado e quis sacanear todo mundo, ou se o embotamento era tanto que até agora não percebeu que causou na nossa vida naquele fim de tarde.

Meu sonho é que todos os motoristas de Roma (de ônibus, carros, lambretas e patinetes) virem todos alteristas e passem a se relacionar mais com o outro. Porque o modo de dirigir dos romanos é atroz (e sim, acabo de fazer uma generalização escrota), mas isso merece um capítulo à parte…

Cheguei em casa aquele dia uma hora mais tarde. Cansada, perplexa, mas sob um firmamento obsceno de tanta estrela! Sorri em silêncio. Se parte do amor é doer, a outra é gozar...

Pois é, meus amigos. Não se pode ter tudo. Agora é você que escolhe. Quer tempestade de neve no metrô invejável de Zurique? Ou quer o crazybus da cidade do céu azul? Renúncias, meus caros, renúncias…

Nota curiosa cheia de amor: A cor azul simboliza o Dia Mundial pela Conscientização pelo Autismo, celebrado em 2 de abril. A data é importante para marcar os esforços na luta pela inclusão e atenção qualificada aos pacientes diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

*915B: Linhas fictícias, não lembro os números


No ponto de ônibus do fatídico dia

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