martedì 5 marzo 2019

3. É preciso amar para não adoecer

(AVISO: Esse texto é excepcionalmente mais longo por razões de "tô me despedindo e tô sensível". Nos próximos vou maneirar, prometo)

O ano se inicia; o carnaval acabou. Meu quarto se esvazia; a mala já lotou. Tenho exatamente um mês para embarcar num avião e passar a chamar Roma de lar. Automaticamente (e sem escapatória) ganhar a Itália me faz perder a madre terra brasileira. É dada a largada ao festival de ambivalências: consigo passar do êxtase ao pranto em um intervalo de horas e não é SÓ porque sou geminiana (prevejo piadas). Meu inconsciente deu para funcionar a todo vapor num mecanismo compensatório pra lá de bipolar equacionando os saldos dessa história. E qualquer coisa é gatilho! 

O vizinho no elevador com seu ordinário “que calor hein?” ativa subitamente minhas sinapses doidonas que se põem a jogar um ping-pong neurótico:

“Vou perder o clima tropical. Odeio inverno.”
“Tá, mas amo neve.”
“Porém na neve não tem abacate e eu não vivo sem abacate”.
“Não tem abacate, mas tem segurança…” 
“É verdade, lá não tenho medo de bala perdida.”
“Ah, mas tem terrorismo.”
“Justo, mas morrer de ataque terrorista comendo gelato eu topo. Gelato é demais e aqui no Brasil estão apenas começando a produzir…”
“Falando em comida, será que vou comer de novo a lasanha da minha avó?” 

Vos pouparei da progressão da minha masturbação mental. A verdade é que eu poderia chafurdar em um lamaçal de Rivotril e, ainda assim, a questão não se resolveria. A angústia permanece. 

Freud descobriu (muito antes de eu comprar a passagem e entrar em ansiedade maníaco-depressiva) que não conseguimos fugir do furo existencial. Pode-se apenas tangenciá-lo. Desde sempre. Perdemos o útero para ganharmos o mundo. Depois o colo para ganharmos pernas. E assim se desenrola… Seguimos vida afora topando (ou não) perder para ganhar e ponderando essa matemática psíquica como melhor nos convier. Novos ciclos exigem lutos. 

Por aqui está um laboratório interessante: minha mãe não cessa de frisar a falta que eu vou fazer, mas está no nível avançado de italiano e está, pela primeira vez na vida, decorando um apartamento novo e todinho seu com a sua carinha. Meu irmão provavelmente sentirá a distância e o peso de não compartilhar as delícias e dores familiares, mas achou genial ter uma casa em Roma para ficar nas férias. Ele ama Roma e falou italiano com perfeição uma década antes de mim. Meu pai oscila entre me ajudar com os trâmites fiscais da mudança, celebrar a minha coragem de amar e lamuriar a morte da filha-criança. E tem a minha avó... minha versão de luto preferida! Dona Maria (e seu sangue quente espanhol) já até brigou com meu namorado, por quem ela tem verdadeira paixão, mas atribui a culpa da minha partida. Nonna reclama semanalmente da minha mudança… Reclama mesmo! Sem constrangimento algum! Entretanto bordou seis panos de prato lindíssimos para a minha nova casa. E baixou o Skype. 

É emocionante ver a singular elaboração do luto de minha família e dos meus pacientes e de um mundo inteiro de homo sapiens sapiens. Cada um faz o que pode e o que topa fazer com seus recursos. Eu também fiz o que pude…

Se você for um amigo meu, um parente, um paciente, um abacate ou mesmo o sol, saiba que não foi fácil te deixar. Fiz e refiz a contabilidade do meu coração mil vezes antes de deixar para trás as milhares de bênçãos e alegrias que vocês me deram. Eu jamais deixaria o Brasil se não houvesse me apaixonado. Jamais. Não o deixaria nem pela política, nem pela criminalidade, nem pelo preço da gasolina, nem por nada. Eu honro e amo essa terra mais do que eu amo os meus gatos (e eu amo muito os meus gatos).

Acontece que eu me apaixonei. Não, não foi por Roma! A coisa com a cidade veio bem depois… quem me fez deixar o Brasil foi o seu contrário. A aigologia de Roma revelou-se para mim através de um gringo de olhos exuberantes e coração farto. Um homem que amo profundamente e que se dá quase inteiro para e por mim. Tanta dedicação seria até descomedida não fosse seu senso crítico, seu instinto de auto-amor e sua disciplina admirável. Um homem que me entorpece de afeto e libido e que, ainda assim, dá toda a borda que minha histeria precisa. Me dá moldura sem abreviar meu espaço. Me faz menos egoísta. Eu o amo muito. 

E quando a gente ama muito a gente fica imenso de coragem e a Vida aproveita para nos apresentar desafios que coloquem em jogo nossa relação eu-outro. Vaidosa que sou, sempre prezei em demasia pela relação especular eu-eu mesma. Era cheia de meus pronomes possessivos: eu e meu trabalho, minha natação, minha meditação... (reparem que ser ser psicanalista, nadar e meditar são todas atividades muito solitárias - mas o prêmio desse insight não é meu, não. Foi porrada da minha analista mesmo...)
Acontece que Andrea-italiano-passional-com-Leão-em-Vênus golpeava meu egoísmo dia-após-dia convidando-me a uma vida intensa a dois: desafiadora, renunciadora... porém um banquete de vitalidade e deleite. Era amor sob uma forma que antes eu não conhecia. Petulante do jeito que só ele sabe ser, meu gringo me convidava a não mais me relacionar com meu ego e meus possessivos, mas quebrar o espelho de Narciso e abrir-me para o outro. Com todas as implicações e dificuldades que isso exigisse. 

Em 1914, na Introdução ao Narcisismo, Freud afirma: "Em última análise, precisamos amar para não adoecer". Com dois significantes "Lieben und arbeiten", Freud condensa a existência humana: o amor nos mantém investidos libidinalmente, o trabalho nos dá um lugar no tecido social.

Continuar no Brasil seria trair o meu desejo e eu não perdoo auto-traições. Auto-traição adoece.

E foi nesse ponto que eu tomei a minha decisão. Sem que eu me movesse, a balança pendeu sobremodo para um dos lados e eu compreendi que poderia tecer novamente minha esfera social na Itália. Todavia eu não poderia viver em São Paulo desinvestida de amor. Paga-se um preço muito caro por não viver, por não amar.

Para aqueles que deixo, oferto um outro bocadinho de Freud. O pai da psicanálise dizia que por trás de algo terminável há sempre um fundo interminável. Então, queridos, sigo com os nossos intermináveis… levo-os no coração, pois tanta riqueza não caberia nos 23kg da bagagem. Assim vou mais leve... cheia de gratidão, entusiasmo e um pouco de dor. Mas eu vou... É preciso amar para não adoecer.



Bordado feito por mim @broderiepourlavie


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